Roteiro: Vidas Secas
https://pt.scribd.com/document/317734628/PECA-TEARTRAL-COMPLETA-VIDAS-SECAS-DE-GRACILIANO-RAMOS-ORIGINAL
Narrador: A peça se inicia com a caminhada dos retirantes. O cenário é típico da caatinga, sinhá Vitória com o filho mais novo no colo e o baú de folha na cabeça, Fabiano triste, este tem as pernas tortas, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão e a espingarda no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia vão atrás.
Narrador: Menino mais velho (senta-se no chão, chorando):
Menino mais velho : "Num" aguento mais caminhar.
Narrador: Fabiano (vermelho de raiva)
Fabiano: Anda logo condenado do diabo!
Narrador: Fabiano pega a faca com a bainha e bate no menino mais velho, que esperneia e deita fechando os olhos.)
Fabiano: Anda excomungado, ou servirá de comida para os urubus!
Sinhá Vitória: Anda "home", faça "arguma" coisa, "tamo" perto!
Narrador: Fabiano guarda a faca amarrano-a no cinturão, acocora-se e ajuda o menino mais velho a se levantar, pega a espingarda e a entrega a sinhá Vitória.)(Ausente do companheiro, a cachorra Baleia toma a frente do grupo. Baleia corre ofegante, a língua sai pra fora da boca, de vez em quando ela se detém e espera os retirantes.)
Sinhá Vitória: "Tava" aqui matutando e senti uma "farta" enorme do papagaio!
Fabiano: Deixa de bobagem "muié", ele não fazia nada, nem falar o coitado sabia! E o que tinha de ser feito, foi feito. "Nóis comemo" o papagaio e não temos que sentir "farta" dele. Era comer ele ou morrer de fome!
Narrador: (A família e a cachorra chegam em uma fazenda, o curral está deserto, o chiqueiro arruinado e também deserto, a casa do fazendeiro está fechada, tudo anunciava abandono.)
Sinhá Vitória (Feliz e assustada ao mesmo tempo):
Sinhá Vitória: Uma fazenda? "tamos sarvos"!
Narrador:Fabiano (procura sinal de vida na casa, bate e força a porta):
Fabiano: Não tem ninguém, o "mió" que temos que fazer é ficar aqui.
Narrador: (Saem de cena e aparecem os meninos brincando com a cachorra, aparece Fabiano com um vidro na mão, ele pega dois gravetos e cruza-os formando uma cruz, e reza.)
Fabiano: Amém! Se tiver morto aqui, ele não vai "vortar" a oração é forte!
Narrador: (Fabiano levanta-se e caminha em direção a sua casa. A cachorra Baleia na frente, o focinho arregaçado procurando algo.) Fabiano (Pega o cigarro e enrola, dá um sorriso forçado)
Fabiano: Fabiano, "ocê" é um "home"! (Fabiano para um instante e olha para os meninos que ficam sem entender.)
Narrador: Fabiano (Com medo da reação dos meninos): Não Fabiano, "cê" é um bicho! "Cê" não sabe lidar com as pessoas!(Fabiano sai de cena, os meninos entreolham-se e conversam espantados com a atitude do pai.)
Menino mais velho: Sei não, acho que pai ficou maluco!
Menino mais novo: Ele é "home" ou bicho?
Menino mais velho: Sei não!
Narrador: (Fabiano reaparece, chamando os meninos em um tom autoritário, de quem exige respeito.)
Fabiano: Vamos seus molengas!
Menino mais velho: O que é molenga?
Narrador: Fabiano: (Com uma cara ruim franzi a testa.)
Fabiano: "Cê tá" muito enxerido menino! Onde já se viu, querer saber das coisas. Tudo o que "ocês" tem que saber é montar a cavalo e amansar bois "brabos". Se um dia desses as coisas mudarem, se não tiver mais seca aqui no sertão... e tudo andar direitinho. Aí sim "ocês" podem perguntar!
Narrador: (Chegam junto de sinhá Vitória, que sentada prepara a comida.) Sinhá Vitória (Olha para o marido, interroga-o):
Sinhá Vitória: Preocupado "home"?
Fabiano: Esses capetas têm cada idéia...
Sinhá Vitoria: De quem "cê tá" falando?
Fabiano: Dos meninos!Sinhá Vitória:
Sinhá Vitoria: Deixa de bobagem "home", onde já se viu... Quando "cê" for na feira compra sal, farinha, feijão, rapadura, uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelho.
Fabiano: Tudo bem "muié", já "tô" indo pra cidade!
Narrador: (Chegando á cidade Fabiano entra em um bar e bebe um pouco, logo em seguida entra o soldado amarelo e convida Fabiano para jogar, Fabiano aceita.)
Soldado Amarelo: (Com ar de autoridade): Vamos jogar um trinta e um aê camarada?
Fabiano: claro, sua autoridade!
Narrador: (Depois da primeira rodada, Fabiano perde o que o irrita e faz com que ele se levante e saia.
Fabiano fica a alguns metros do lugar onde está o soldado amarelo.
O soldado se levanta enfurecido e empurra Fabiano, que fica parado sem reação.
O soldado pisa nos pés de Fabiano,
este perde o controle e xinga a mãe dele,
então o soldado dá voz de prisão e prende Fabiano.)
Fabiano: Seu filho"d'uma" égua!
Soldado Amarelo (autoritário): O senhor está preso por desacato á autoridade!
Narrador: (Com a demora de Fabiano, sinhá Vitória fica preocupada. Sinhá Vitória começa a rezar e levanta-se ofegante.) Sinhá Vitória (com um ar preocupado):
Sinhá Vitória: O que aconteceu com esse "home" que a essa hora, ainda não chegou?
Menino mais velho: Vai ver ele se perdeu!
Menino mais novo: "Ué" ! Pai conhece esses lugares " mió" que ninguém...
Narrador: (Aparece Fabiano torto e com um olhar severo, joga as coisas que tráz consigo no chão.)
Sinhá Vitória (assustada): O que aconteceu "home"?
Fabiano: Fui preso, por xingar a mãe de um soldado!
Sinhá vitória: Mas como isso foi acontecer "home" de Deus?
Fabiano: Não me amole "muié", vou esfriar a cabeça no "trabaio".
Menino mais velho (para a cachorra): Queria saber o que é o inferno, mas "main" parece "braba"!
Narrador: (O menino se aproxima da mãe e segura a ponta de seu vestido, enrolando-o no dedo.)
Narrador: Menino mais velho (senta-se perto da mãe): Ouvi a senhora Terta dizendo inferno,
Menino mais velho: o que é isso? Como é?
Sinhá Vitória (puchando o menino para o seu colo): É um lugar onde tem espetos quentes, fogueiras e...
Menino mais velho: A senhora viu?
Narrador: (Sinhá Vitória se zanga com a pergunta do menino e aplica-lhe um puchão de orelha. O menino sai indignado de perto da mãe e esconde-se debaixo de uma moita, a cachorra Baleia acompanha-o. O menino se senta e acomoda a cabeça da cachorra em suas pernas.)
Menino mais velho: "Cê" é a única que me entende Baleia. O inferno não deve ser um lugar ruim, é um nome bonito...=Baleia "cê tá" doente?
Narrador: Fabiano (acendendo um cigarro):
Fabiano "Muié", o jeito vai ser matar Baleia, ela "tá" doente...e pode passar doença pra nós.
Narrador: Sinhá Vitória (pegando o cigarro do marido):
Sinhá Vitória "Tá" certo "home"! "Tá" certo"!
Narrador: (Fabiano pega a espingarda, sinhá Vitória chama os meninos que assustados já imaginam o que vai acontecer.)
Menino mais velho (com voz de choro): Porque ele vai matar a Baleia?
Menino mais novo: Ela vai curar, não é preciso matar ela!
Sinhá Vitória: O que tem que ser feito, vai ser feito.
Narrador: (Os meninos tentam sair, mas sinhá Vitória os pucha e manda os meninos se sentarem e taparem
os ouvidos.)
Sinhá Vitória: Sentem-se aí e tapem os ouvidos!
Narrador: (Enquanto isso, Fabiano continua a arrumar a espingarda, logo em seguida ele se prepara para atirar em Baleia que assustada se esconde. Fabiano chega perto e dispara um tiro em Baleia que morre. Fabiano chega perto da cachorra reza e a arrasta para fora dali. As crianças levantam-se com um ar abatido. Todos saem.
Em outro lugar, o escritório do patrão,
Narrador: Fabiano entra com o chapéu na mão,
Patrão: senta-se em uma cadeira.
Narrador: E com o olhar baixo de quem teme encarar o outro.)
Fabiano: O senhor "descurpa"eu por ter vindo aqui, mas é que a sua conta não "tá" dando certo com a da minha "muié"!
Narrador: Patrão (Soltando uma bela gargalhada):
Patrão:São os juros, seu Fabiano!
Fabiano (com um ar envergonhado): O senhor "descurpa" eu viu...
Patrão: Esse povo da roça tem cada idéia!
Narrador: (Fabiano levanta-se e sai, pouco tempo depois chega a sua casa.) Fabiano (triste e com a voz rouca):
Fabiano É "muié nóis nos livremos" da cachorra, mas não do cachoro do patrão, que vive me roubando!
Sinhá Vitória (cabisbaixa e com a voz triste): "Ô home já té" me acostumei com a nossa vida. "Trabaiar" só pra receber em troca o que comer!
Narrador: Fabiano (senta-se com uma voz de revolta):
Fabiano Mas "num tá" certo, "nóis trabaiar" feito condenado pra "num" ganhar quase nada e ainda ser roubado. "Tá" certo "muié"? "Tá" certo isso?
Sinhá Vitória (irritada): "Num tá" certo "home", mas o que "nóis" vai fazer Matar um desgraçado como ele? Pra quê? A troco de quê? "Nóis num" somos nada. "Cê" quer passar o resto de seus dias na prisão, é isso?
Narrador: Fabiano (com o olhar perdido):
Fabiano: É "muié" se eu tivesse que matar, "num" seria o patrão, seria aquele soldado amarelo que pisou no meu pé e me fez passar uma noite na cadeia. Dia desses eu vi ele lá perto da lagoa seca, minha vontade era de matá-lo, sentir o sangue daquele desgraçado nas minhas mãos, mas o miserável só é "home" na cidade...
Sinhá Vitória: Bobagem sua"home", a de querer se vingar deste soldado. "Cê" tem "trabaio" demais pra pensar em vinganças. Enquanto "cê tá" aí pensando em bobagens, os pássaros estão matando os bois.
Narrador: Fabiano (resmunga franzi a testa):
Fabiano: Bobagem é o que "cê tá" falando, onde já se viu, pássaros matar bois!
Sinhá Vitória (pensativa): A seca "tá" chegando de novo "home", só "ocê" que ainda "num"percebeu!
Fabiano (olhando assustado para sinhá Vitória): "Nóis" temos que preparar desde já os mantimentos para a viagem... Desgraça de vida onde já se viu..
Narrador:.(A família se arruma, pega as únicas coisas que lhes pertecem e partem calados, com medo de onde chegariam. Até que sinhá Vitória pucha conversa com Fabiano.)
Sinhá Vitória: Quando é que "nóis vamo" ter uma vida digna"home"? Um lugar onde os meninos cresçam como gente e frequentem escola?
Menino mais velho: Diz pai, quando é que "nóis vai" deixar de ter essas VIDAS SECAS, diz pai...
Fabiano: "Num sei ! "Num" sei!